Vá ao Circo, Palhaço!

O disco pulando, e a máquina do tempo girando. O circo instalou-se ao lado do laboratório, tudo parece meio caótico com essas musicas circenses maníacas. Uma ranhura na máquina do tempo (coitada), e tento observar por dentro, como as partículas interagem, como o ferro se oxida, como as barbas crescem, como a poeira aparece.

Meu reflexo nos espelhos de fora, o toca-discos também já parece um tanto danificado devido a tanto magnetismo estrangeiro. Coisas que vêm de fora, do lado de fora da casa. Bem onde andam os palhaços da madrugada. Observando, mimetizando, gargalhando e esbravejando, bêbados, vomitando pelas ruas. Uma terra de ninguém, isso é o que parece a cidade desde que o circo chegou.

Às vezes, emergem das paredes globos oculares gigantescos, cheios de veias saltadas e coágulos. Íris verdes; tenta me sugar e ao mesmo tempo fundir-se aos meus tecidos, ler meus livros. Era uma branca e áspera parede, agora é quase um organismo. Primeiro o globo ocular, depois os capilares, pulsando junto à casa, no mesmo compasso habitual. Olhos emergem de onde era observado.

Como a parede sabe que está sendo observada? Que números fantásticos realizam naquele circo, afinal?

Como um cão, num ápice de insanidade, um deles tenta apanhar o próprio cabelo, rasgá-lo, arrancá-lo do couro cabeludo, comer o próprio cabelo, seu lanche da madrugada. O palhaço, pintado, escondendo-se não se sabe de que, exatamente. Mas se esconde, talvez nem desfaça a própria maquiagem, a fim de acreditar ser o que finge ser todos os dias.

Um dia desses mesmo um cavalo escapou do circo. Relinchou alto, cavalgou por toda a extensão da rua. Parou em casas, destruiu jardins; senhoras saíram em prantos, ao ver as orquídeas todas pisoteadas. Um garoto tentou atingi-lo com um estilingue, sem sucesso. O velho da mercearia ameaçou matá-lo com sua carabina enferrujada. O coveiro, sempre sujo e barbado, atirou, num frenesi, suas poucas moedas, seus poucos réis. Uma delas acertou o olho do cavalo, mas não foi tão forte assim. O coveiro tinha sono, afinal, assim como todos nós.

Não consigo recordar ao certo quando foi a ultima vez que o circo veio, antes disso. Creio que já é marca de sessenta anos. Muito tempo, na verdade. Aberrações, pessoas sem membros rastejando pelas ruas, como dizia meu pai. Pareciam verdadeiros vermes. Rastejavam, lambiam o asfalto, riam da própria bizarrice. Palhaços com insetos nas mãos, divertindo todas as crianças, distribuindo balas, brinquedos, o circo sempre trouxe muita alegria aos capuchos.

Oh, que lona majestosa ergueu-se desde essa semana. Quantas cores no meio da noite iluminada por tão precários postes. O cheiro exaustivo dos quitutes lá servidos e do óleo velho queimado. Que outra época do ano, que outro acontecimento faz vermos seres dançando tango no meio-fio; quando mais podemos ver gente comendo gente no meio-fio; quando mais vemos uma sodomia tão grotesca envolvendo fios de cobre e sarjetas?!

As crianças parecem não se incomodar com tantas cenas grotescas, elas ainda ganham seus doces das mesmas mãos sujas daqueles animais. Querem porque querem entrar no circo, ver o que é lá dentro, se é mais suburbano que o subúrbio daqui de fora, se há um portal mágico, se o ilusionista cria coelhos na cartola, se serra as dançarinas e estas saem ilesas.

Há algum tempo não chove. A chuva deixaria o chão escorregadio, daria margem a novos números, a grama mais verde, apesar de não poder ser vista.

E aquilo ali, agora… Uma bicicleta! Bom, não é uma bicicleta. Tem uns quarenta acentos, mas lembra muito uma centopéia, passando tão graciosa pela rua. A velha ainda está chorando as orquídeas, as crianças, ao perceberem tal movimento, já pularam da cama e também estão se esfregando pelas calçadas e gritando em busca de doces duvidosos.

O coveiro deve ter desistido de resistir: agora dança num dos postes de iluminação, com seus dentes tortos num largo sorriso, sua pá brandindo enquanto este bate nas portas de metal das vendas fechadas.

O tilintar dos sinos, agora também percebo que há cães na rua. Algumas cadelas no cio, uivando, copulando, sangrando. Gatos miando pelos telhados, toca-discos enferrujado, circo e seu êxtase na sessão da madrugada (não faço questão alguma de saber por que raios existe uma sessão de madrugada, o máximo que vi foi uns senhores de cartola e umas senhoras com pouca roupa entrando no local).

Tempo, tempo, tempo. A máquina do tempo ainda gira arranhada, e apesar do barulho lá fora e aqui dentro, ainda tento olhar por dentro. Quanta besteira, eu mesmo construí minha máquina do tempo, o mínimo que se espera é que eu saiba como foi feita.

Mas eu estava bêbado.

– Manuscrito (mal)traduzido, achado num vasto campo de entulho, próximo à Estátua.

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