Avenida Marginal

Como ela poderia saber o que queria da vida?

Como ela poderia saber o que significam os carros retângulos que passam lá adiante, voando sobre asfalto, cortando com borracha queimada o cheiro do café e do chocolate?

Como ela poderia saber se o café que cheira é o dela ou o da chaminé? Como ela poderia saber se o chocolate é dela ou do mundo todo? Como ela poderia saber se o vapor é só para os pulmões dela?

Ela não sabia. Ela não poderia saber.

Débora Lunardi das Flores. Débora. Débi. Lu. Luna. Tudo. Nada. Noite. Avenida, aquela avenida da Marginal por onde voam os carros, lá longe, distantes, deixando os rastros de luz e pneu. Ela observava, compenetrada num vazio, nesse vazio dos catorze, esse que não se lembra de ter visto Saturno voltar, nesse que não tem fim nem começo, que não sabe como veio, sabe para onde vai, mas não sabe como chegar lá.

Eram nesses cristais de vida vazia que ela se sentia preenchida. Era alheia aos pais, importantes figuras de Dois Pilares. Era alheia às festas dos outros pais, que também eram figuras importantíssimas da cidade. Era um vácuo que a protegia das conversas rasas, do cheiro do refrigerante do copo de quem já bebia cerveja, da roupa bem passada, dos modos, das cores cômodas, da boa educação que devia transpirar. Era na Avenida Marginal seu templo, sua paz, com seu café barato, seu chocolate acabado e com os carros lá longe a passar.

Um chão de concreto, antigo, tão antigo quanto seus cabelos que batiam agora nos ombros. Tão antigo quanto sua vontade de não ser o que todos esperavam que ela fosse. Tão antigo quanto a curiosidade por saber o que há além da avenida, além do Rio da Espada, além das estradas que levam e trazem, além de tudo isso, além do lago municipal, além do bairro mais longe onde estão as antenas, além dos domínios industriais… Deve ter algo além disso tudo… Mas o quê haveria de ser?

Débora sentia nada saber. Ela queria. Mas ela não sabia.

Eram vinte e uma. Um ônibus partia, o último para São Paulo. Ela poderia estar dentro. Por quê não? Oras, os trocados gentilmente dados, aquela esmola encarecidamente fornecida pelo Dr. Flores e pela Dona Lunardi, eram mais que suficientes para ir a São Paulo e não voltar. Mas o que tinha por lá? Como ela voltaria? Ela queria voltar? Ela queria ir?

Não devia ser melhor que Dois Pilares. Uma cidadezinha de tamanho perfeito. Tem de tudo. Tem metrô, tem trem, tem cheiro de café e chocolate. Tem gente inteligente, tem gente que sabe das coisas, tem trabalho, tem comida, tem bar, tem esses microcomputadores que conseguem fazer a gente conversar com gente lá da Groenlândia, tem televisão, tem o lago que fica bonito até na chuva… O que haveria de melhor em outro lugar que não ali?

Mas… E se o grande segredo que Débora buscava não estivesse em algo melhor? E se o segredo era fazer o caminho contrário, descer a montanha do glamour superficial e tolo da cidade pequena, pra ver do que se trata mesmo aquele mundo grande? Sofrer um pouco, passar dificuldades, todas essas coisas que ela era impedida de fazer porque era presa numa vida boa, numa vida tranquila… Numa vida completamente alienada.

Pensava, ela, e pensava de novo naquela sexta-feira, enquanto mais um ônibus chegava. Periódico, como a Lua, eles iam e voltavam sempre com as mesmas pinturas e mesmas placas, mesmos destinos, mesmas pessoas, fazendo as mesmas coisas nas mesmas vidas… E ela ali, observava, estranha, estrangeira em sua própria cidade, que não era sua mas sim de seus pais. Eram eles que tinham as ruas e os restaurantes e as casas dos amigos, não ela. Ela era um anexo, algo que cresceu por dentro da mãe e foi expelida no hospital municipal em algum lugar de 1979. Nada era dela. Ela era convidada a viver na vida de quem já tava lá antes.

Mil novecentos e noventa e três, os retângulos acenavam à distância, transformando-se cada vez menos em motores a combustão, cada vez mais em formas geometricamente perfeitas, ainda que inúteis. Sons, que já não eram dos cilindros e carburadores, nem do refrigerador, nem do diesel do ônibus que estacionava, mas era uma coisa só com o barulho dos ipês da marginal, com as pequenas ondas do afluente do Rio da Espada, sereno como o olhar da observadora. A serenidade pálida de uma lua cheia que puxa a maré com uma violência só conhecida pela própria água do mar. Uma serenidade que espera o momento certo, a conjuntura perfeita para o universo rachar e desmoronar por cima de si mesmo, enquanto ela, a Lua, em pedaços, ri-se por ter esperado tanto tempo…

…E tudo se acabava antes de começar. Onde começava a vida de Débora? Onde haveria de começar? Como ia terminar? O que ia acontecer no meio? Ia ser feliz um dia? Ia ser triste? Ia ter alguém? Ia ter a si mesma? Ia precisar de algo que não conhece? Ia sentir falta de algo que conhece? Ia se tornar parte daqueles retângulos que deixam contornos coloridos em vermelho e âmbar do outro lado da Avenida Marginal? Ia viver? Quanto tempo depois de ter nascido ia finalmente conseguir nascer? Será que alguém da Groenlândia queria falar com ela naquele microcomputador? Que ônibus ela ia pegar um dia, para não voltar? Que arrependimento a esperava?

Eram perguntas, mais perguntas, sem nenhuma resposta aguardando no fim da noite. O que a aguardava era o café pago, o troco jogado junto com o resto das coisas na bolsa, o cheiro do perfume que passou para ficar vendo a cidade sem mais ninguém, a fumaça dos ônibus em seu cabelo, sua blusa de lã, já velha mas tão confortável… E o Fiat que buzinava no desembarque.

– Débora! Venha!

Fiat cinza de gente de bem, gente honesta, gente que era convidada para as festas e levava a filha para se enturmar. Gente sólida, regular, trabalhadora. Gente chata. Gente insuportável. Gente que invadia o quarto. Gente que passava por cima como um trator. Gente que não deixava a bagunça ficar bagunçada, acreditando piamente que a ordem era melhor. Não era. Não tinha como ser. Toda a serenidade só serve como prenúncio do caos completo.

Ali terminava a noite de Débora, as vinte e duas horas do dia treze, aquela sexta-feira de mil novecentos e noventa e três na Avenida Marginal, ao centro da cidade de Dois Pilares.

Há alguns quilômetros dali, a noite de outro alguém se repetia de novo. Lá depois das chaminés, um fogo começava a arder em meio a uma multidão de ferro e forja. Nas antenas do limite da cidade, um pessoal bacana brincava com os resultados da rodada do campeonato brasileiro, enquanto transmitiam códigos secretos em amplitude modulada. Na Universidade, o grupo dos ocultos estudava línguas antigas no subsolo.

Toda a cidade e todos os carros que passavam do outro lado da Marginal estavam vivos. Mas Débora ainda não sabia. Débora ainda não podia saber.

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