Edge

Saudações, caros viajantes! Outra vez um atraso um tanto relevante desde nossa última comunicação, não? Bom, aqui está tudo muito úmido e, a cada dia, descubro novas galerias escondidas e símbolos e linguagens e mensagens e ciências!

De qualquer forma, consegui receber apenas algumas das mensagens que nobres criaturas tentaram enviar-me. É uma pena, no entanto, que o rapaz que se identificou como “chronic mood disorder that falls within the depression spectrum”, tenha errado. Os magos e tolos serão melhor abordados numa próxima comunicação (esses papesóides Voynich-like são realmente estranhos de se interpretar ou traduzir ou qualquer coisa do tipo).

Por hora, meus caros, deixarei um texto mal-traduzido que diz sobre as bordas ásperas, sobre raladores de queijo, muros psicodramáticos e peças teatrais envolvendo velhos conhecidos.

A Borda

Recheada, normal, vazia, tanto faz. Havia algo naquela noite que ainda me incomodava depois de tantos meses. Eu sabia exatamente o que era, mas não queria falar. Pra ninguém. Ninguém mesmo. Nenhum tipo de ser precisava saber daquilo, eu não precisava saber daquilo… Mas eu insistia em lembrar que sabia.

Não gosto, na verdade detesto amaldiçoar coisas, fatos, pessoas; mas é a única palavra que consegue definir razoavelmente o que sinto por tal memória: maldita (devo ressaltar que realmente não gosto dessa palavra…).

Vem, toda vez vem. E não some. Sempre volta. E eu não consigo falar pra ninguém. É angustiante. A imagem perfeita, apesar de todas as distorções, dentro de mim. Uma imagem de quando estive completamente fora. E assisti tudo.

Era como o pior pesadelo que pudesse haver. Mas não era um pesadelo. Era tudo verdade e estava exatamente à minha frente. Eu podia tocar, cheirar e ouvir.

Creio que fiquei tão chocado que não pude esboçar reações físicas convincentes. Eu queria levantar, dar uma ultima olhada, deixar que tudo o que houvesse dentro de mim fosse vomitado pelos meus olhos, como se toda a minha mente tivesse bebido demais a pior bebida que pode haver no mundo, qualquer misto de cachaça barata, veneno, insetos e restos… Talvez seja esse o gosto real do pesadelo, algo muito longe das visões romantizadas onde era um delicioso cálice amargo.

Talvez seja assim enquanto pesadelo.

Mas eu não podia. Aliás, podia. Mas eu definitivamente não podia. Mesmo podendo.

É estranho pensar com clareza quando a cabeça não funciona corretamente. Digo isso porque textos como esse, escritos à parede, só conseguem sair sob condições extremas, tanto física quanto psicologicamente. Extremo. Extremo. Extremo.

Há um preço a se pagar por tudo. Um dos preços cruéis que a realidade cobra é a de querer se sustentar sobre os próprios pés, fingir um equilíbrio, mesmo quando não se consegue enxergar o próprio palmo à frente de tanta embriaguez. E embriaguez, reforço, por bebidas ruins, baratas, podres.

É provável que algum pensador antigo conseguisse descrever melhor isso tudo, sinto falta de Aristóteles ou Homero (se é que ele existiu) ou qualquer outro que se vê nos livros medíocres. Tantas visões refutadas cientificamente, sob métodos minunciosamente planejados… Protesto. Não acredito em métodos minunciosamente planejados. O mundo é como o mundo pode ser. Não como sempre foi nem como sempre será.

Olhar pro céu é uma experiência fantástica.

Não vomitei quando deveria, mas escrever em paredes (mesmo que com pedaços de ferro que despertam aflição em pessoas mais sensatas) é um bom modo de se fazer isso. Espantar os demônios que habitam a cela, não deixá-los dormir. É o que eles deveriam fazer com você, afinal, mas os papéis se invertem e tudo o que eles almejam é voltar para o inferno e ter um sono tranqüilo.

Isso é bom, se for analisado. Tanto querem invadir a realidade que não suportam e voltam ao inferno. Vomitar é uma maneira de se manter no que é convencionado como “real”. É afastar maus fluidos, é ser mais vivo.

Não devemos ficar orgulhosos de como somos pequenos, mas sim por termos alguma coisa que nos faça ter consciência de que o somos. Contemplar a irrelevância é difícil.

Espero que os riscos nessas paredes fiquem suficientemente fundos; não sei quando mais alguém achará esse lugar, essa cela em que eu mesmo me tranquei e joguei fora a chave sem comida nem bebida.

Por aqui, se alguém de algum lugar está lendo, passou um ser que contemplou um pesadelo nunca imaginado tornando-se realidade, e realizou o caminho inverso das coisas: normalmente alguém tem um pesadelo antes. No entanto, eu tive depois. Várias e várias noites, até mesmo antes de dormir.

Espero, do fundo do que me resta a ser chamado de “sentimento”, que nenhum, nenhum de vocês passe por isso.

Não é bom.

Mas, se acontecer, não se deixe cegar. Aquilo que faz olhar para o céu todas as noites e esboçar uma sensação confortável não pode ser apagado por uma overdose de veneno. A diferença é o tamanho da dose, não?

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– Assinado como “D. Psi, o que mora na tempestade”.

Bom, à parte disso, mais algumas notas que esqueci de ressaltar: estou em busca de uma bússola para orientação; não uma grande e profissional, quero uma bússola pequena, barata e que possa ser guardada numa caixa pequena. Não é para mim, mas… Convenhamos que seja meio difícil achar uma loja aberta numa cidade que simplesmente não existe para o mundo.

Se algum de vocês, nobres almas, souberem como consigo uma, por favor, avisem; é parte importante de um novo sistema que estou a montar com válvulas de cobalto e tecnécio manufaturado a partir de ervilhas em conserva.

Também estou trabalhando (não tão arduamente, confesso com vergonha em meus olhos) na produção de um algoritmo mais eficiente para comunicação interoceanotemporal a partir dessas coisas cinzas.

Por hora, preciso ir, está um pouco tarde e estou ficando com fome. Preciso cavar mais um pouco de concreto e, quem sabe, achar latas de conserva com prazo de validade vencido há somente trinta décadas.

Até a vista!

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