Chuva e Trovões na Praça do Julgamento

Chovia e trovejava.

Naquela noite obscura, entrei na espiral de minha própria vergonha. A praça parecia uma floresta fechada e cheia de criaturas sombrias, cinzas, verdes e pretas. O verde era bem escuro, cada banco estava úmido e cheio de folhas. Eu estava sendo observado, mas não via por quem. Nem sabia por que alguém se daria ao trabalho.

Deitei num dos bancos e percebi, lentamente, formar-se à minha esquerda uma casa, como que erguida do meio da relva molhada, por vigas que não sei de onde surgiram. Maciça, branca e velha. Estava lá há eras, mas estive ocupado todo esse tempo a ponto de não vê-la.

Assim foi, inclusive, como aquela moça que passara ao meu lado na feira. Procurei-a por toda a vida, e, concentrado em achá-la, deixei de vê-la quando passou ao lado, com suas sacolas e seu vestido vermelho.

Era sublime pensar em sua voz. Arrepiava-me além de todas as percepções que impus a mim mesmo sobre o que é a vida em si. Além da voz tinha um cheiro ímpar, bastante doce, enjoativo para alguns, mas não para mim.

Sabia sobre o que conversar, e dominava as linguagens perdidas dos monges do oriente, e desenhava a própria imaginação em traços inocentes que acabaram por pintar todas as cores que faziam falta no meu mundo monocromático.

Claro que ela não sabia disso. E eu também não sabia como eram bonitas as cores antes de derramar solvente sobre minha própria barriga, acidentalmente.

É provável que as cores jamais voltem, e os desenhos inocentes tão pouco. Agora o que se fazia sobre a parede do meu quarto era, senão, quadros impressionistas, distorcidos, como um conceito tão obscuro que resolveu se curvar, tal qual ferrugem, sobre o substrato da minha dor.

E ela também carregava cestas, e vivia em campos, embora eu saiba que não se tratava da Arcádia outra vez. Era parecido, mas como se a Arcádia fosse real, menos idealizada, em termos, e menos exagerada. Tão palpável e tão angustiantemente real…

A cada dia eu olhava os desenhos retorcidos e decidia que iria achá-la em qualquer feira de qualquer antigo feudo de qualquer lugar entre os mares e as luas. Qualquer que fosse a montanha, se ela estivesse lá, eu iria procurá-la.

O tempo chega a ser como uma refeição. Mal percebia que já havia se passado mais de dois ou três anos desde que decidi que ela existia. A barba já era sobressalente em minha face, assim como cabelo estava mais assustado por tudo que havia já presenciado, e as roupas, e os rádios, tudo. Era uma enganação e uma perdição, e eu sabia.

Embora árduo e lambendo as margens da impossibilidade, eu ainda acreditava, e olhava para cada nova rua abandonada esperançoso por achá-la jogada, desolada, com lágrimas secas decorando, como maquiagem, a pálida e temerosa face, esperando só por mim, o único que iria confortá-la naquele mundo de sombras e radiação acima dos níveis tolerados por qualquer ser que vive.

Hei de achá-la.

– Q.E.D.; PRYPIAT, STNK, VDL, RVNB, 191781:4812.

Mas a casa parecia vazia. As janelas estavam fechadas, escuras. A fachada, branca, já mostrava as marcas do tempo. Parecia algum tipo de catedral, mas duvido que algum tipo de santidade iria gostar de passar por ali as noites, naquela chuva. Quem sou eu, entretanto, para falar com tal autoridade sobre santidades… Sou só um pecador.

Não era uma chuva calma.

Cada trovão caía três vezes ao mesmo lugar, e todos eles pareciam muito próximos de onde eu estava. Astuto, escolhi como refúgio um lugar seguro numa tempestade, sob a copa de árvores.

É como se cada um dos relâmpagos tentasse me alertar de onde eu estava, e que não era sensato estar ali por tanto tempo. Mas esqueci-me da linguagem dos raios e continuei andando, em minha embriaguês, até a porta velha da casa velha.

Ninguém respondia às batidas. A porta rangia, mas não era por vida, e sim por velhice. Talvez não houvesse ninguém mesmo, com exceção daquela que com certeza estaria. Eu não queria vê-la, e ela não queria me ver.

Entrei à casa mesmo assim e vi como ela parecia pequena, embora gigantesca, por fora, a partir do momento que olhei por dentro.

Os galhos e a relva úmida de fora estavam presentes nos corredores abandonados de dentro. Uma leve luz, talvez de postes, clareava um pouco cada canto, e eu podia ver, embora não muito, como era o local.

Tudo parecia maior e exagerado. Havia quartos que eram tão grandes quanto casas inteiras; vazios, esperando por alguém a habitá-los, preparados para aqueles que viriam depois, e todos eles pareciam ter se perdido num caminho escuro, rotativo, de pensamentos circulares e estradas de barro em beiras de rios flamejantes do próprio medo de respirar.

A cozinha parecia familiar – facas jogadas ao chão, marcadas, manchadas, um rubro apagado e seco que ou era de tomates ou de sangue, tanto faz. Apesar das lâminas, não pareciam pertencer a uma assassina, mas sim a alguém que, mergulhado na piscina do desespero, acabou por se cortar todas as noites para se lembrar de que a dor física também existia. Armários de madeira, rotos, apodrecendo perto da escadaria que levava para baixo de um térreo que se encontrava no terceiro andar.

Continuei a andar e percebi as texturas do chão, e, como de costume, aconcheguei-me cada vez mais ao calor do chão gélido e sujo de piso quebradiço com cheiro de incensos de cemitério. As serenatas estavam gravadas, uma por uma, nos buracos que se revelavam, como lepra, ao longo dos corredores.

Havia um quarto com chão e paredes azuis, menos abarrotado e menos sujo. Ninguém estava por lá, tão pouco. Apesar disso, parecia estar esperando ainda mais ansiosamente por algum morador único, mas não havia ninguém. Eras e eras de espera, e ninguém viria.

Ninguém poderia vir.

Além da lepra da madeira, também havia outros buracos cavados, quadrados, no chão. Eram como gavetas, e provavelmente se tratavam de algum tipo de coleção de cofres num lugar tão comum que jamais despertaria qualquer suspeita por esconder valiosos papéis e jóias.

A cada trovejada, toda a casa infinita se iluminava, e a realidade parecia fluida – era como se o ar fosse mais denso, e eu pudesse ver cada distorção; parecia um tipo de camaleão que me grudara aos olhos – não os que vêem, mas os que percebem. Talvez, também, fosse algum tipo de bolha que criei em volta de minhas concepções, a fim de conservá-las. E me afogava, sem perceber, nas próprias águas serenas da realidade.

Uma sala escura, com bancos longilíneos de madeira. Também parecia ser local de muita e muita gente, mas só podia ver um vulto. Era um tipo de mulher, cabelo curto e loiro, magra, e a escuridão refletia o gosto de cada palavra que de sua boca ousava sair, ou ao menos que parecia sair de lá. Ela também esperava desde eras, e ninguém vinha – ao contrário dos outros, ela também sabia que ninguém haveria de vir, e que a casa fora construída por tanto tempo e sob prumo de tantas expectativas que jamais alguém teria coragem de se deitar num daqueles quartos tão majestosos destinados a pessoas tão comuns.

Na casa, o tempo parava. Trovejava, ainda, e a chuva continuava séria e tempestuosa. Não havia aquela que estava dizendo, assim como não havia ninguém na casa além de mim, e penso, inclusive, se havia mesmo casa, ou se fazia tudo parte de um cenário proposto por minha loucura, num provável momento em que caí no sono ao meio daquela praça radioativa cheia de árvores perigosas.

Podia ser, também, que os trovões eram meus. Não há quem possa provar que eu não estava pagando por meus crimes numa condenação elétrica, e que até a cidade era uma ilusão criada para mostrar minha própria jornada até aquela cadeira de madeira e ferro, até aqueles circuitos, fios desencapados, faíscas e aquele ser cinza, encapuzado, que, como carrasco, acionava a alavanca e fazia o tempo passar infinitamente devagar enquanto eu caminhava até o final do túnel, arrependido.

A condenação era um templo frio, como aquela casa, onde eu devia aprender as orações certas para expulsar os demônios que pudessem aparecer na forma de cães, porcos ou barulhos – não só em mim, como em todos os outros ventos. Os espetos do mar de brasa já tocavam meus braços, e eu deveria continuar descendo pela espiral e confrontar a forma mais crua de castigo, sem deixar de acreditar que há um final justo.

Um gosto do último gole de vodka voltou em minha garganta, e senti certo alívio. Era como se estivesse sendo abraçado por aquela moça que perdi na feira, vestida de vermelho, que esperava só por mim. Podia sentir seu gosto no gole já bebido de vodka, e, assim como a garrafa, só ela poderia me deixar tão ébrio.

Queria, antes de beber a garrafa, bebê-la em vermelho. Sempre gostei mais de vinho que de vodka, afinal.

É triste que só a vodka sobreviva a condições tão extremas de castigo.

A casa começa a se diluir, assim como minhas ilusões. Os quartos ventam por dentro, mesmo com janelas fechadas – sequer pude ver alguma delas, do lado de dentro. O sentimento de decepção e desapontamento paira sobre cada canto da casa, e, mesmo sem saber o porquê, eu sou um dos culpados. Também não sei culpado de quê. Não posso saber – só aceitar.

Uma multidão precisava de lar, mas a cidade já não podia abrigar ninguém além de mim. Até podia, em verdade, mas não havia ninguém com tamanho desapego às coisas boas a ponto de se contentar com vodka e pedaços velhos de civilização congelada e restos orgânicos.

Era a trinta ou quarenta minutos da rodoviária, e para lá eu deveria voltar e procurar em outros cantos do esgoto.

Lentamente eu fechei e abri os olhos, e não havia mais casa. Era eu, a relva por cima de mim e um cheiro deveras agradável de vestido vermelho.

Pensei ter visto um vulto, mas era só o vento em meu cabelo.

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