Sob as Águas de Selene, Pt. I

Sentia estar perdendo algumas palavras depois de cada página que tornava nos livros amarelados. Não sentia falta, e a história sequer perdia sentido, mas deixá-las escaparem por folhas velhas incomodava.

Existe uma piscina infinita de um líquido viscoso e azulado – definitivamente não é água.

Antes que eu mergulhasse dentro do copo de minha própria embriaguez, alguém bateu à porta – o que era inesperado, posto que todas as pessoas de bem já se dormiam e sonhavam com a salvação do fim dos tempos…

Porta tão velha quanto o livro e o calendário; eu sequer podia saber que época do ano era. Chovia, esquentava, esfriava, plantas cresciam num dia e apodreciam noutro, as folhas não ficavam verdes por mais de uma semana…

Abri e a encontrei embaixo de uma capa velha, ou pelo menos muito surrada, úmida – não sei se por chuva, lágrimas, ou as duas coisas; depois de relutar e respirar olhou-me nos olhos, e eu fui imediatamente curado de toda a sobriedade que me faltava. Era ela, e eu não conseguia imaginar o que isso significava.

Eu não sabia sequer quem era.

Parecia, de fato, que já nos conhecíamos de muito tempo – de uma feira que haveria de ocorrer daqui seiscentos anos, talvez. O que importa é que toda aquela luminosidade sombria que era jogada em meus olhos a partir de baixo da capa me parecia familiar, e tinha notável gosto de vinho.

Coloquei-a próxima ao fogo, e ofereci um copo de bebida – seria melhor um chá, mas a erva havia acabado há tempos… Ela não parecia ansiosa por continuar inebria, afinal, tão pouco eu, que mal começara a escrever sobre as raízes das árvores do inferno.

Não queria forçá-la a falar, me preocupava apenas se a temperatura e a casa eram agradáveis a ela. Sentia por tal desconhecida algo esquisito e inclusive vergonhoso, por isso deveria fornecer os melhores dos meus serviços de bom senso e bons modos.

Era alta madrugada. Ela nada falava. Respirava, bebia, olhava para o fogo, mas nada falava. Sequer uma palavra, ironia, pedido ou oração.

Subi-me ao topo frágil da casa – e qual casa tem um topo resistente? -, com meu cálice prateado, minhas penas tinteiras e minhas veias avermelhadas por causa do fogo. A lua estava no periélio, gigantesca, brilhante, sedutora. Não podiam ser manchas, não podiam ser defeitos…

As memórias me começaram a vir lentamente, como se minha consciência tivesse flutuado até o final dos tempos e voltado para me contar do passado que eu haveria de viver. As imagens começaram a surgir em minha frente.

Era ela, mas parecia diferente. Nem se parecia, na verdade, com aquela que batera à porta, pelo menos não fisicamente; eu sabia, no entanto, que só podia ser.

Usava, ela, uma roupa inteira azulada, sem adereços, sem alarde; deitava à minha direita numa cama pequena, porém bem arrumada. Algo nos era mostrado, com luzes baixas – um tipo de espetáculo teatral com raios e tempestades e cores absurdas, acompanhado sublimemente por um grupo de bardos invisíveis que moravam além dos olhos que mostravam o que os nossos tentavam entender.

Não podia eu controlar, apenas assistia à minha vida daquele passado tão à frente na linha das civilizações; é provável que eu tivesse algum tipo de motivo para aquilo tudo, mas, ao mesmo tempo, era blasfemo, errado, e eu não podia parar.

Embaixo da capa, num lugar onde nem a mais digna consciência haveria de enxergar, vi minha mão direita acariciar suas pernas, lentamente, com mais afeto que lascívia, e o afeto e a lascívia se confundiam conforme eu a arranhava delicadamente e explorava com interesse cada pedaço de terra nova a ser descoberta por tal navegador errante… Havia certa tremulação em meus punhos, aquilo parecia ser a cada instante mais e mais errado…

…E ela, apesar disso, não se sentia nem um pouco incomodada participando de tal pecado mutuo, e eu continuava, sem poder me ajudar.

O tecido era confortável – a textura de pele, lisa, limpa e da cor de Selene, era mais ainda, e a interface era como um lembrete de quão culpado eu era ao afastar o tecido e deslizar sob as roupas. E eu desviava por baixo de cada interface, com uma vontade latente e flamejante que continuava a aumentar.

Ela sabia, e sempre soube, o que eu estava querendo. Qualquer um provido de mínima imaginação entenderia lendo qualquer relato mínimo que houvesse… Eu rastejava, e as teias nas quais fui preso não me incomodavam, e o perigo era como azeite sendo derramado numa brasa incandescente que cuspia suas faíscas a cada gota; eu entrava cada vez mais fundo nas trevas do futuro da civilização, só para ter um pouco mais de luz das velas e menos dos inquisidores.

O que antes era singelo ficava a cada grão de areia mais intenso, mais ávido, e as pontas perdidas dos meus dedos que deslizavam agora eram minhas mãos inteiras apertando cada momento daquelas pernas e daquelas interfaces lisas e misteriosas. Eu queria rasgá-la completamente, livrá-la daquela carapaça moral azulada, praticar todo tipo de perversões naquele mundo tão sombrio que se aproximava do apocalipse cinzento.

Já havia me esquecido das peças, dos bardos e dos atores e do tempo; olhava atenciosamente para sua face em perfil, pouco iluminada, a fim de ver algum tipo de reação, qualquer uma que fosse, qualquer uma…

…Mas ela continuava a jogar comigo muito além de onde eu conhecia as regras, e quem estava trancafiado era eu, dentro do meu próprio resto de instinto.

Uma leve angústia se pairava dentro das minhas ciências – eu queria saber do desfecho, qualquer que fosse, e a história parecia presa num loop, embora quem estivesse em loop fosse eu, somente eu. Eu sabia disso, também.

Os lábios tinham marcas – não sei dizer se era ela quem os mordia quando eu não estava olhando, ou se era eu mesmo enquanto me distraía com minha consciência.

Fosse o segundo caso, ficaria ainda mais angustiado por não conseguir lembrar que gosto ela tinha. E queria prová-la sem distrações, sem ruídos que não os nossos, sem luzes demais, sem medo do juízo final cinza e sem temer os erros máximos – fosse o tempo que fosse, não éramos mais que humanos.

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