O Conto do Milênio – Capítulo 12: A Elfa do Universo

Ah, espíritos do Mar e do Sol, há quanto tempo estiveram longe!

Percebi que n’outra vez acordei em meio a todo um oceano de terra venenosa. Tudo em frente são dunas – não fossem desprovidas de cores, provavelmente seriam tão avermelhadas…

Em meio ao milagre de reabrir os olhos, antes de contemplar o Universo que começava a se desdobrar em frente ao espelho de todos os milhares de fogos, senti minha garganta seca de quem por tanto havia dormido. Não quis água, porém. Quis ver o mundo, e sabia que embaixo das galerias do infinito haveria quanto refresco eu pudesse desejar, desde que sentisse a inspiração necessária para buscar por onde até mesmo os mais corajosos sentem medo de ir.

As sombras da probabilidade matemática que me guiaram de volta até a rua de minha casa também me fizeram acreditar que havia a gente nova nas casas velhas.

Depois do fim do último dos milênios, as mãos da Elfa das Chuvas me carregaram nos bons ventos da incerteza, sobre o mar da angústia do verão gélido da eternidade, até o último segundo dos anos, partindo desde o começo do ciclóide sobre doze.

 

Vi, através da jornada, logo em frente a mim, admiráveis estranhos. Vi a mim mesmo, sete vezes, e não neguei a essência de minhas todas máscaras que rabiscaram a tela das coincidências e puderam ver, de tantas formas, por tantos ângulos insólitos – embora os olhos fossem os mesmos –, toda a realidade fantasiada por criaturas misticamente transcendentais.

Depois de tudo o que era a mim mesmo, vi a Grega, esverdeada, com gosto de vinho adoçado por mel roubado dos ares mais puros, com o mais sedutor dos venenos. Vi como apreciei cada gota, e, sob a perspectiva do final do milênio, sei que apenas foi o vinho mais etéreo de todos; aquele adoçado por tão nobre sentimento, que foi capaz, até os últimos momentos, de esconder as gotas da cicuta.

Às últimas palavras do livro dos livros, Saturno ainda parece uma boa colônia de férias. A geometria dos mundos não precisa de simplificações. O infinito se dobra e volta pra perto num momentum desconhecido. As linhas se entrelaçam à lógica mais misteriosa.

O nó é apenas o meio de uma lemniscata.

Vi, também, a Assassina e seu punhal. Nunca me foi segredo, e também nunca me importei de fato. Há pouco, afinal, para se importar sobre a dor dos cortes, quando já se conhece tão bem o sangue. A alma é livre, assim também deve ser o sangue. Que é o corpo, afinal, senão uma cópia do que deseja a alma? Não o é, também, dessa forma, o mundo?

Apreciei, como da outra vez, o brilho que emanava de tão bem afiada lâmina.

Um trovão distante; vi emergir a Estrangeira, carregada nos braços do senhor dos trovões, desde os longínquos continentes quebrados em arquipélagos, até minhas mãos. Conheci-a de novo, antes de tantos anos, e recordei as sensações que ainda me serão apresentadas num quarto do futuro, quando todas as nossas matemáticas estiverem erradas. Quando a soma dos unitários não for igual ao secundário, ali morará meu alívio.

Foi que me distraiu por tantos e tantos meses a Estrangeira, com suas palavras simbólicas e seus silêncios incômodos. Por vezes sinto pena de intuições tão apegadas a leis bem consolidadas…

À taverna encontrei a Bêbada, num relance, enquanto se esquecia, com a maestria que me inveja, sobre tudo. Não era sobre mim, que estava lá, no mesmo canto da perdição, observando, talvez ciente de mim mesmo do lado de fora do relógio do espelho. Era sobre tudo que ela se esquecia. Apagava, de verdade, as profundezas dos arcos tangentes da memória; bebia mais uma taça, desfalecia acordada num fractal e falava da Lua.

Residentes, olhos, astrônomos… O gosto inevitável dos velhos Salões sempre há de acompanhar as descrições, em parágrafos que parecem não ter sentido algum em relação ao resto da História. É quase como um comentário do próprio escritor em meio a um conto todo, de forma mascarada, quase ilusória… Nunca haveremos de saber, no entanto.

Por entre castanholas, ouvi a música e percebi a Dançarina, bem acompanhada por uma multidão de espectros que cintilavam nas faíscas e na incandescência da carne. Eram muitas curvas roubando lugar que antes eram destinados a uma visão mais robusta e grosseira da realidade. Quando olhei através do lado de fora, entendi o que me soava ébrio em meio a toda aquela atmosfera. O universo finalmente percebera que as curvas deixavam a realidade muito mais bela que poderia ser, e, noutra demonstração de profunda sabedoria, substituiu a existência do mundo por algo muito mais sublime, muito mais complexo, muito mais dançante. Criou, em segredo, mais redes de cores invisíveis, aumentou os tons quebrados das músicas descompassadas, fez-se fluir diante das novas percepções que daqui a tanto serão notadas, para, então, serem substituídas por outras ainda mais místicas.

A Dançarina é uma constante. Pode sumir todo o resto, mas sempre haverá a música. Com a música, sempre haverá uma Dançarina. Pode ser uma folha sinusoidal que dança com o vento. Pode ser a chuva, guiada por gradientes. Pode ser a maré que uiva, como fosse lobo do ártico. Pode ser um respirar, um conto, uma palavra. Sempre haverá músicas. Sempre haverá uma Dançarina.

Durante todo o cavalgar das terras e das esferas celestes, uma voz tentava me chamar até as rodoviárias do rio dos fantasmas e dos cemitérios. Tolo fui de não ouvir as profecias que vinham de semelhante feiticeira herege. Gente herege tem, por algum motivo, o dom da clarividência, de maneira muito mais aguçada que os fiéis comuns de qualquer que seja a religião vigente. A falta de crença na salvação por meio das regras talvez ajude a olhar além das barreiras das leis. Talvez não seja tão difícil prever o futuro, talvez sequer sejam necessárias as poções mágicas. Talvez não haja mágica alguma. O que pode haver, possivelmente, é apenas a certeza da tolice das leis. Ah, as bem consolidadas leis da completeza…

Confesso, eu não quis mesmo saber, e deixei que o diálogo entre mim e as lápides acontecessem conforte eu andasse ao cemitério. Não tive sabedoria nem estratégias; usei as balísticas mais rudes, que quase me custaram a vida. Sou um homem de fé, não de razão.

Olá, feiticeira, eu disse. Parece que nos despediremos outra vez…

Também, perto do Sol das esfinges, aquela que escrevi nas pedras. Aquela para quem dediquei a primeira música. A mesma colina, os mesmos raios, mesmo gosto, mesmo cheiro. As mesmas plantações, as mesmas janelas, fotos; a mesma porta, a mesma vontade, mesmo vendo de tão longe, de dar o mesmo chute à mesma madeira, para que a mesma relva traduzida em gente ficasse mesmo presa comigo dentro dos cantos daquele mesmo mundo velho e carente das mesmas revoluções.

Fotos não existem, minha doce Tangerina. Também não existem relatos concretos. Não existem castelos, não existem passagens de ônibus… Mas toda a História que nunca ocorre sempre volta em seus perfeitos detalhes dentro de minha mente.

 

A Elfa das Chuvas adentrou comigo por entre dias que se misturavam entre si e me ofereceu o café amargo, para que eu não mais dormisse por tanto tempo. Depois do último gole de café, deu-me chocolates, e aquilo era para, talvez, que eu me livrasse da sensação amarga, mas nunca, sob hipótese alguma, pudesse me esquecer que sempre foi o gosto amargo, o mesmo que vem antes do doce, que me deixara acordado, e é a mesma amargura que haverá de me despertar daqui adiante… Em fato, é melhor não lembrar o gosto exato, mas ter a certeza de que ele existe.

Sobre a montanha das mudanças, abracei com fervor a que trazia as chuvas todas, até que ela começasse a ensaiar escapatória, como sempre havia de ser. Tenho o café, o chocolate, o tabaco, as revoluções do mundo, as guerras da humanidade, e não posso tocá-la em seus lábios. Eles, afinal, sempre fluem para o éter, como fossem parte dele. Como fossem menos sólidos que minhas mãos. Como se, para alcançá-los, tivesse eu de aprender a reunir todos os cacos das leis físicas, e levitar até outra montanha – aquela que me escapa à visão terrena.

 

Numa fração de segunda-feira ela some, e volto a contemplar a mim mesmo, desta vez nas melhores das companhias. Não eram as companhias mais bonitas, nem as com melhor aroma, e que todos os sacerdotes me mantenham bem longe do gosto de tais companhias… Mas, como disse numa tarde dessas, foram as que me ajudaram a sobreviver.

Enquanto dentro do milênio me arranharam as marcas dos passos, sempre houve quem também estivesse nos campos ensangüentados com outras armas, outros escudos, outras vidas, outros porquês, outras vidas que procuravam razões completamente diferentes das minhas e que, por alguma dobra dos tecidos da realidade, calharam a seguir as mesmas estradas pontiagudas durante todas as minhas sete existências. Não me atrevi a contá-los, mas eram, facilmente – se é que existe tal palavra –, tão poderoso quanto qualquer exército que aportasse ao horizonte.

Nossas armas, toscas, brilhavam com as divindades de todas as civilizações de todas as épocas. Éramos, afinal, os escolhidos para desbravar as ruas escuras. Fomos forjados para olhar dentro dos olhos de cada demônio que tentasse ir até o outro lado, de onde fomos tirados.

Foram as ruas mais sombrias que já pude conhecer. Foram os demônios mais desprovidos de luminescência. Foram as traições mais verdadeiras, as covardias mais bem elaboradas. Foram as doenças do Universo todo que expeliam sobre nossas bocas a carne podre e o suco infecto. Por noites e noites não conseguíamos ver os dias. Passamos as mais infindáveis fomes que podem assolar as almas ásperas que éramos.

A exatidão dos erros nos alimentou na perda. A desilusão nos matou a sede, no deserto, com água salgada, mas bem diluída. As imagens foram desprendidas das paredes. Para sabermos quem éramos nós mesmos, precisávamos da descrição dos outros – não havia qualquer espelho, e a água turva não refletia nossos rostos.

Desbravamos as escuras terras do caos, e sobrevivemos. Agora, do outro lado, posso ver que há infinitos mundos menos cinzentos, menos mentirosos e menos obscuros.

 

Acordo, outra vez, depois do fim do último milênio, na cidade das cidades. Ainda é cinza, mas menos cinza que tudo que conheci na falta real das cores. Ainda é vazia, mas menos vazia que qualquer outra metrópole por onde caminhei. Ainda é assombrada, mas não por demônios. Em vez deles, papéis e experimentos interminados. Cadências que trazem memórias confortáveis, ares de descanso, ventos agradáveis numa tarde como há muito não havia.

Ouço a primeira explosão, num lugar qualquer que minha vista não consegue alcançar. O milênio da eternidade começa, depois do fim do mundo.

Estico minhas mãos e recolho o vidro. O jarro da entropia volta a ficar inteiro, como num milagre. Meus pés saem dos sapatos sólidos.

A cidade é a mesma – foram meus olhos, que tanto mudaram.

Feliz novo milênio, caros viajantes.

Como não poderia deixar de ser, gostaria de aproveitar a oportunidade e agradecer a todos que contribuíram para mais um ano de trabalho. Gostaria de agradecer o pessoal que cuidou do som e da luz, aos técnicos revisores, aos profissionais de consultoria, ao pessoal artístico, aos cientistas que me ajudaram a realizar as pesquisas com os átomos frios, aos linguistas que tanto cooperaram com a tradução dos documentos encontrados, às inspirações todas que se fizeram em formas curvilíneas e inexplicavelmente belas, aos fluidos do vento, aos ciclóides, às sinusoidais, ao grupo que cuidou da parte burocrática, aos amigos investidores, ao pessoal das válvulas centrípetas, enfim, a todos que cooperaram conosco neste último milênio. E, aproveitando, ainda, gostaria de pedí-los, ou, melhor, pedir-lhes, que continuem nos acompanhando… Ao menos um ano mais.

Mude o mundo.

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